Este artigo descreve os principais momentos da história médico-farmacêutica da gelatina e analisa como ela é usada em aplicações farmacêuticas e médicas.
O que é gelatina?
A gelatina é uma proteína derivada de matérias-primas animais. É obtida por hidrólise parcial do colágeno, a proteína mais abundante no mundo animal, com altas concentrações presentes nos tecidos conjuntivos. Sua composição tem dezoito aminoácidos, oito dos quais considerados essenciais. Como um polímero polidisperso, a gelatina exibe muitas propriedades e funções úteis que servem a aplicações farmacêuticas e médicas.
Propriedades
- Segura
- Solúvel
- Termorreversível
- Digestível
- Biocompatível
- Inodora/insípida
- Baixo potencial alergênico
Funcionalidades
- Ligação de água
- Gelificante
- Fortalecimento/Estabilizante
- Formação de película
- Adesão
- Solúvel
- Termorreversível
- Formação de espuma
A história da gelatina em aplicações farmacêuticas e médicas
Cápsulas de gelatina
1834
A cápsula de gelatina foi inventada em 1834 por François Mothes(1), um jovem farmacêutico na França. Na época, os médicos tinham dificuldade em fazer com que os pacientes cumprissem o uso de medicamentos porque a maioria dos remédios tinha uma composição líquida ou em pó de sabor desagradável. Outro desafio era acertar as medidas para cada dose. Então, Mothes criou um método para encapsular a dose exata do remédio líquido em uma fina camada de gelatina líquida quente, endurecida com o resfriamento. Quando preenchida com medicamentos, a cápsula podia ser engolida sem ser saboreada, sendo dissolvida à temperatura corporal, liberando o ingrediente ativo.
1847
A cápsula de gelatina rapidamente se espalhou pelo mundo. Em 1847, a primeira cápsula dura de gelatina de duas seções foi inventada por James Murdock, um inventor de Londres(2). Esse desenvolvimento permitiu que os fabricantes de medicamentos encapsulassem composições de medicamentos em pó.
1894-1897
Ao final do século 19, os Estados Unidos havia se tornado o país líder mundial no desenvolvimento de cápsulas de gelatina(3). Entre os anos de 1894 e 1897, a empresa farmacêutica americana Eli Lilly construiu a primeira fábrica de cápsulas para a produção das recém-desenvolvidas cápsulas duras de duas seções.
1930
Robert P. Scherer revolucionou a produção de cápsulas de gelatina mole (softgels) ao desenvolver uma máquina para envasamento automático e contínuo que possibilitou a produção em massa(4). Hoje, a gelatina é um excipiente amplamente utilizado em cápsulas duras e cápsulas moles.
Substitutos de plasma à base de gelatina
1915
Os substitutos de plasma são uma solução coloidal usada para repor o volume sanguíneo e restaurar a pressão arterial durante emergências médicas.
Em 1915, o Dr. James Logan foi o primeiro a administrar com sucesso um substituto de plasma à base de gelatina por via intravenosa(5). Esse desenvolvimento passou relativamente despercebido no período entre as duas guerras mundiais, durante o qual outras soluções coloidais, como a goma arábica, foram usadas. Essas soluções coloidais de não-gelatina foram eficazes como expansores de volume e representavam menos risco para os pacientes.
1940-1952
O desenvolvimento de substitutos de plasma à base de gelatina só foi retomado à época da Segunda Guerra Mundial. Vários ensaios clínicos na década de 1940 mostraram que a gelatina tinha o potencial de ser um substituto eficaz do plasma, muito mais seguro do que outras soluções coloidais. Esse potencial foi alcançado em 1952, com a invenção da gelatina succinilada, uma nova geração de gelatina quimicamente modificada.
1962
Tempos depois, o desenvolvimento da gelatina succinilada permitiu aos cientistas criar uma gelatina bem ajustada, com alto peso molecular e baixa viscosidade, tornando-a ideal para substitutos do plasma. Em 1962 foi a vez do desenvolvimento da gelatina ligada à ureia, criada a partir de uma modificação química envolvendo a reticulação de polipeptídeos(6).
Atualidade
Hoje em dia, substitutos de plasma preparados a partir de gelatina succinilada e gelatina ligada à ureia são comumente usados.
Hemostáticos à base de gelatina
1940
A palavra "hemostático" vem de "hemostasia", que é o processo biológico de estancar e prevenir a hemorragia. Um hemostático é um dispositivo médico usado por cirurgiões para estancar uma hemorragia e facilitar a cicatrização durante e após procedimentos cirúrgicos. Os primeiros hemostáticos à base de gelatina foram desenvolvidos na década de 1940. Até então, os hemostáticos eram feitos a partir de uma combinação de plasma humano e trombina bovina, ambos de difícil purificação. Essa falta de pureza aumentava o risco de infecção para os pacientes. Os cientistas começaram então a usar novos agentes hemostáticos à base de gelatina para criar hemostáticos. A gelatina foi uma excelente escolha, por possui as propriedades funcionais e físicas ideais e oferecer níveis mais elevados de pureza, melhorando a segurança do paciente(7).
Atualidade
Os hemostáticos à base de gelatina são hoje um componente padrão dos kits de ferramentas dos cirurgiões.
Como a gelatina é usada em aplicações farmacêuticas
Cápsulas duras e moles
A gelatina é usada como excipiente na produção de cápsulas duras e moles. O produto tem custos de produção mais baixos, envolve menos complexidades de fabricação e garante excelentes taxas de dissolução de ingredientes farmacêuticos ativos (API). Além disso, também ajuda a proteger ingredientes sensíveis contra oxigênio, luminosidade, crescimento microbiano e outras formas de contaminação.
A gelatina farmacêutica oferece várias vantagens técnicas em relação aos excipientes não gelatinosos, como hidroxiproplmetilcelulose (HPMC) para cápsulas duras e amido modificado para cápsulas moles. Além disso, é o único excipiente sem número E, tornando-a um ingrediente natural que cumpre a especificação técnica da norma ISO sobre definições e critérios técnicos (ISO/TS 19657:2017).
Comprimidos
Dois tipos de gelatina são comumente usados como aglutinantes em comprimidos:
- Não gelificante
- Gelificante
A gelatina gelificante é usada após a granulação do pó do comprimido em compressão. Ela possui maior força de gel, o que confere coesão, resistência e dureza aos comprimidos. Sua força de gel elevada também resulta em uma taxa de desintegração mais demorada.
A gelatina não gelificante é usada na compressão direta. Ela tem menor poder de ligação, tornando os comprimidos mais fracos. No entanto, tem uma taxa de desintegração rápida, permitindo que os pacientes experimentem os efeitos do medicamento mais rapidamente.
Substitutos do plasma sanguíneo
A gelatina hidrolisada é um componente importante nos substitutos do plasma, uma classe de formulação parenteral conhecida como expansor de volume. Quando altamente purificada com baixo nível de endotoxina, pode ser usada para expandir temporariamente o volume sanguíneo durante emergências médicas.
Motivos que a tornam o ingrediente ideal:
- Altamente biocompatível
- Semelhante em viscosidade e comportamento molecular ao plasma sanguíneo
- Curto tempo de retenção, especialmente quando comparado a alternativas de amido
- Biodegradável e não cumulável no corpo
- Estável durante todo o ciclo de vida do produto
A gelatina hidrolisada usada em substitutos do plasma requer modificações especiais. Existem dois tipos principais de gelatina modificada usada em substitutos do plasma:
A gelatina succinilada é o tipo mais comum, oferecendo maior compatibilidade corporal.
A gelatina ligada à ureia é modificada por polipeptídeos de reticulação, resultando em uma taxa de difusão mais lenta.
Vacinas
Uma gelatina especialmente purificada com baixos níveis de endotoxina é usada como estabilizador em algumas vacinas. Ela oferece os seguintes benefícios:
- Ajuda a manter a estabilidade de produtos liofilizados (desidratação em baixas temperaturas)
- Reduz o potencial de efeitos colaterais
- Garante a segurança do pacience
Como a gelatina é usada em dispositivos médicos
Hemostáticos à base de gelatina
A gelatina é um agente hemostático amplamente utilizado para ajudar cirurgiões a minimizar a perda sanguínea durante cirurgias. Os hemostáticos à base de gelatina são normalmente fabricados de colágeno suíno (proveniente da pele de porco) e estão disponíveis na forma de esponjas, tiras, pó ou nanofibras.
Os hemostáticos à base de gelatina podem absorver mais de 40 vezes seu próprio peso, tornando-os ideais para criar coágulos sanguíneos artificiais e interromper o fluxo sanguíneo. Quando combinados com a trombina, podem ajudar ainda mais na formação de coágulos.
Como a gelatina é altamente biocompatível, as esponjas de gelatina podem ser deixadas no corpo para serem dissolvidas naturalmente. Algumas aplicações in vivo requerem taxas de dissolução específicas, permitindo que as esponjas sejam configuradas especificamente para atender às necessidades individuais.
Hastes femorais
As hastes femorais são um dispositivo usado em próteses de quadril. A gelatina purificada, combinada com plastificante para aumentar a elasticidade, pode ser usada em hastes femorais. Essas hastes facilitam a troca da prótese e protegem os tecidos de reações exotérmicas durante a solidificação do gesso. Com alta biocompatibilidade, baixa imunogenicidade e alta biodegradabilidade, podem ser absorvidas pelo organismo.
Como a gelatina é usada na medicina regenerativa
A medicina regenerativa combina biologia molecular e engenharia de tecidos, com o objetivo de usar as próprias células do paciente para reparar e regenerar tecidos doentes ou lesionados.
Nesse campo da medicina, a gelatina é um biomaterial útil que imita a matriz extracelular e promove o crescimento celular, melhorando a viabilidade celular. A gelatina usada na medicina regenerativa deve ser altamente purificada para minimizar endotoxinas e pirogênios, garantindo ótimo desempenho e segurança do paciente.
O que é gelatina de grau médico-farmacêutico?
A gelatina é uma proteína solúvel obtida por meio da hidrólise parcial do colágeno derivado dos ossos, couros e peles de animais, principalmente de vacas, porcos e peixes. Para extrair a gelatina, o colágeno nativo é solúvel por meio de tratamento ácido, alcalino ou enzimático e depois fervido em água. Para que a gelatina seja considerada de grau farmacêutico, ela deve atender a determinados padrões:
Controle de qualidade e rastreabilidade
Testes, controle e rastreabilidade total são muito importantes. Isso inclui uma seleção cuidadosa de matérias-primas e fornecedores, a coleta e o transporte rápidos, além de testes e controle rigorosos de matérias-primas para garantir qualidade e segurança ideais.
Especificações técnicas
A gelatina deve atender às especificações descritas na farmacopeia, incluindo:
- Faixa de força do gel
- Faixa de pH
- Condutividade
- Perda na secagem
- eor de zinco
Conformidade com GMP
A gelatina deve ser produzida seguindo as boas práticas de fabricação (BPF), adequadas para a aplicação pretendida, como excipiente, matéria-prima para dispositivos médicos, engenharia de tecidos etc. O processo deve ser auditado por empresas farmacêuticas.
Estamos à disposição para ajudar nossos clientes a cumprir os regulamentos e diretrizes em todo o mundo.
Adaptações especiais
As matérias-primas para dispositivos médicos e outras aplicações específicas (como medicina parenteral, regenerativa e cultura celular) podem ter requisitos adicionais, dependendo da aplicação final, incluindo estudos de inativação do vírus e estarem livres de endotoxinas, pirogênios e micoplasma.
Por que usar a gelatina
A gelatina é um polímero polidisperso com um conjunto único de propriedades que a tornam ideal para uma ampla gama de aplicações.
As principais propriedades da gelatina:
Termorreversível
A gelatina gelificante é termorreversível, o que significa que tem a capacidade de derreter e endurecer reversivelmente a uma temperatura entre 25 °C e 32 °C (solução de gelatina a 10%). A temperatura exata de transição depende do tipo e da concentração de gelatina utilizada, tornando-a um material versátil para aplicações que requerem diferentes temperaturas de fusão.
Força do gel (Bloom)
O valor de bloom da gelatina de grau gelificante determina a firmeza dos produtos gelificados. A gelatina hidrolisada não tem capacidade de formação de gel, portanto, seu valor de bloom é 0.
Biocompatibilidade
Como uma proteína natural, a gelatina oferece alta biocompatibilidade sendo bem tolerada pelo corpo humano.
Ponto de fusão da temperatura corporal
A gelatina derrete à temperatura corporal, tornando-a ideal para aplicações médico-farmacêuticas que requerem metabolização.
Outras razões:
Rótulo Clean Label amigável
Há uma demanda crescente por produtos feitos com materiais seguros e de origem natural. Além disso, há um esforço em diversos setores para aumentar a segurança do paciente. A gelatina atende a essas duas necessidades.
Origem natural(8)
A gelatina é uma proteína natural extraída do colágeno animal.
Segura
A gelatina é considerada não alergênica, exceto em casos raros de alergia à carne. Também é geralmente reconhecida como segura (GRAS - Generally Recognized as Safe) pela Food and Drug Administration (FDA) dos EUA.
Controle de qualidade
A gelatina é um excipiente estável e seguro com excelentes propriedades físicas e químicas. O processo de produção segue rigorosos requisitos nacionais e internacionais de processamento farmacêutico.
"Não importa o que o futuro nos reserva, temos certeza de que a gelatina continuará a desempenhar um papel fundamental."
Conclusão
Com uma história de quase dois séculos, a gelatina teve um papel crucial na evolução dos produtos farmacêuticos e da medicina, basta considerar quantas vidas foram salvas por substitutos de plasma e hemostáticos. Hoje em dia, muitas vezes nem percebemos mais a importância desses dispositivos médicos, mas em algum momento da história foi preciso que fossem inventados e aprimorados, e a gelatina tornou isso possível.
Olhando para o futuro, a gelatina continuará sendo uma parte essencial da inovação médica. Tecnologias médicas que antes existiam apenas no reino da ficção científica agora estão se tornando realidade. O futuro reserva muitos desenvolvimentos interessantes, especialmente na medicina regenerativa, onde os cientistas estão aprendendo a cultivar células e recuperar órgãos do corpo humano. Talvez um dia a gelatina venha a desempenhar um papel no crescimento de novos órgãos a partir do seu próprio DNA!
Fale com a nossa equipe hoje mesmo para descobrir como personalizar gelatinas de grau farmacêutico para que atendam exatamente as suas especificações.
- Pharmaceutical Capsules (2nd ed., p.2)
- Modern Pharmaceutics (4th ed. p.513)
- Pharmaceutical Capsules (2nd ed., p.11)
- Traveling Through Time: A Guide to Michigan's Historical Markers (p.483)
- https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/440081
- https://onlinelibrary.wiley.com/doi/pdf/10.1111/j.1365-2044.1987.tb05376.x
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2978438/
- Gelatin is considered as a natural ingredient in accordance with the ISO technical specification on definitions and technical criteria (ISO/TS 19657:2017).